Thich Nhat Hanh
(...) Somos nossa felicidade, nosso sofrimento, nosso amor e nossa raiva. Tratamos todas as formações mentais da mesma maneira, com espírito de não-dualidade. Não fazemos de nós um campo de batalha, onde um lado luta com o outro. E é isso exatamente o que algumas tradições nos ensinam – [que] o certo deve combater para vencer o errado. No budismo, vemos os dois lados como sendo nós mesmos e tentamos aceitar e examinar todas as partes, reconhecendo sua natureza interdependente. Temos que aceitar as aflições, as formações mentais nocivas, antes de poder transformá-las. Quanto mais as combatemos, mais fortes se tornam. Quanto mais as reprimimos, mais importância ganham.
O que fazer para transformar essas sementes de sofrimento tão profundamente enraizadas? Há três maneiras de trabalhá-las. A primeira coisa a fazer é semear e regar as sementes de felicidade. Em lugar de trabalharmos diretamente com as sementes de sofrimento, fazemos com que as sementes de felicidade as transformem. Deixamos as sementes de sofrimento ficarem sossegadas na consciência armazenadora enquanto plantamos novas sementes de paz, alegria e felicidade ou nutrimos as que já tenham brotado. A consciência mental envia essas sementes de paz e felicidade para transformarem as sementes de sofrimento profundamente enraizadas. Essa é uma transformação indireta.
A segunda maneira é praticar permanentemente a plena consciência de modo a estarmos aptos a reconhecer as sementes do sofrimento quando elas surgem.Assim, todas as vezes que sementes de sofrimento se manifestarem como formações mentais, elas serão banhadas pela luz da plena consciência. Ao entrarem em contato com a plena consciência, elas ficam enfraquecidas. Se não estivermos plenamente conscientes, não seremos capazes sequer de reconhecer as sementes de sofrimento. Com a plena consciência, podemos reconhecê-Ias e não mais as temer.
Se um pássaro for atingido por uma flecha, todas as vezes que enxergar um arco ficará com medo. Deixará até de pousar num galho que tenha a forma de arco. Se formos feridos quando crianças, as sementes de sofrimento que recebemos estarão conosco ainda hoje. A maneira de nos relacionarmos com a vida no momento presente baseia-se nessas sementes. Todos os dias, sementes do passado se manifestam na nossa consciência mental, e por não terem sido banhadas com a luz da plena atenção, não temos consciência delas.Se estivermos com a mente plenamente atenta, todas as vezes que tais sementes brotarem, poderemos reconhecê-las."Oh, é você! Eu a conheço." Só esse reconhecimento já as faz perder um tanto de seu poder sobre nós. As sementes de sofrimento são um campo de energia, como o é também a plena atenção. Quando esses dois campos se encontram, as sementes de sofrimento são transformadas. A transformação ocorre no contato daquelas sementes com a plena consciência.
A terceira maneira de lidar com as aflições que carregamos conosco desde a infância é deliberadamente trazê-las para a nossa consciência mental.Se nossa plena consciência estiver forte e firme, não há por que esperar que as sementes de sofrimento surjam inesperadamente. Sabemos que elas jazem no porão da nossa consciência armazenadora e as convidamos para virem até nossa consciência mental - desde que esta não esteja ocupada com outras coisas e assim possa verter sobre elas a luz da plena consciência. Chamamos a tristeza, o desespero, os arrependimentos e as saudades que no passado nos foi difícil tocar, e os convidamos para sentarem-se e conversar conosco, como velhos amigos. Porém, antes de convidá-Ios, devemos nos certificar de que a lâmpada da plena consciência está acesa brilhando firme e forte.
Se praticamos esses três modos de lidar com nossas sementes de sofrimento, adquirimos estabilidade. Mas a pessoa que está passando por um grande sofrimento e não sabe como praticar a plena consciência, não deve começar pelo terceiro método - convidar as sementes de sofrimento a virem até a consciência mental.Antes deverá nutrir e fazer brotar as sementes de felicidade. Quando a pessoa tiver feito progressos no primeiro método e aprendido a gerar mais energia de plena consciência, ela poderá tentar o segundo método, o de aceitar e reconhecer o sofrimento quando ele surge. Quanto maior a capacidade de reconhecer as sementes de sofrimento, mais elas enfraquecem. Finalmente, sentindo-se forte o suficiente, a pessoa poderá usar o terceiro método convidando as sementes de sofrimento a virem até a consciência mental onde a plena consciência poderá tocá-Ias e transformá-las.
Lidar com o sofrimento é como segurar uma serpente venenosa. Temos que aprender tudo a respeito da serpente, nos fortalecer, nos tornar mais seguros a fim de que possamos pegá-Ia sem que ela nos fira. No fim desse processo, estaremos prontos para enfrentar a serpente. Se nunca a enfrentarmos, um dia ela nos surpreenderá e morreremos de uma picada dela. A dor que carregamos nos níveis profundos da nossa consciência é semelhante. Quando cresce e nos enfrenta, nada podemos fazer se não tivermos praticado para fortalecer e tornar estável a plena consciência. Somente quando estamos prontos, é que devemos convidar nosso sofrimento para vir à tona. Então, quando ele vem, nós podemos manobrá-Io com segurança. Para transformar nosso sofrimento, não lutamos nem procuramos nos livrar dele. Simplesmente o banhamos com a luz da plena consciência.
(...) Com a energia da plena atenção, podemos lidar com as flores e o lixo que estão em nós. Com a plena consciência, protegemos as flores e fazemos o lixo voltar a ser flor. Não temos mais medo do nosso lixo. Um bodhisattva sabe como transformar seu lixo novamente em flores. A pessoa tola procura fugir do lixo, mas se tentamos abandoná-lo, que tipo de alimento teremos para nutrir nossa flor?
Há momentos em que somos capazes de ver a natureza da interexistência nas pessoas e nas coisas. Mas há outros em que esquecemos e recaímos no mundo da construção imaginária. É por isso que a prática continua é importante para que a flor da iluminação desabroche permanentemente no campo da nossa consciência mental. Assim como a luz do sol brilha sobre a vegetação fazendo-a crescer, toda vez que acendemos a luz da plena consciência, podemos transformar todas as formações mentais. Toda formação mental é sensível à energia da plena atenção. Quando a formação mental é saudável, a plena atenção a ajuda a crescer e florir. Quando a formação mental é negativa, a energia da plena atenção pode transformá-la em algo positivo.
(Thich Nhat Hanh, in “Transformações na consciência – de acordo com a psicologia budista”, pág. 231-233).
Fonte:
http://groups.google.com/group/sangha-vix/web/no-espelho-da-morte